Mateus 20:20-28 e Marcos 10:35-44 são Narrativas Contraditórias?

Mateus 20:20-28 e Marcos 10:35-44 são Narrativas Contraditórias?
Rev. Frank Brito

MATEUS 20
(20)  Então se aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, adorando-o, e fazendo-lhe um pedido.
(21)  E ele diz-lhe: Que queres? Ela respondeu: Dize que estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu reino.
(22)  Jesus, porém, respondendo, disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado? Dizem-lhe eles: Podemos.
(23)  E diz-lhes ele: Na verdade bebereis o meu cálice e sereis batizados com o batismo com que eu sou batizado, mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai o tem preparado.
(24)  E, quando os dez ouviram isto, indignaram-se contra os dois irmãos.
(25)  Então Jesus, chamando-os para junto de si, disse: Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles.
(26)  Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal;
(27)  E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo;
(28)  Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos.

MARCOS 10
(35)  E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queremos que nos faças o que te pedirmos.
(36)  E ele lhes disse: Que quereis que vos faça?
(37)  E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda.
(38)  Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu bebo, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?
(39)  E eles lhe disseram: Podemos. Jesus, porém, disse-lhes: Em verdade, vós bebereis o cálice que eu beber, e sereis batizados com o batismo com que eu sou batizado;
(40)  Mas, o assentar-se à minha direita, ou à minha esquerda, não me pertence a mim concedê-lo, mas isso é para aqueles a quem está reservado.
(41)  E os dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João.
(42)  Mas Jesus, chamando-os a si, disse-lhes: Sabeis que os que julgam ser príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas;
(43)  Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal;
(44)  E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos.

A suposta contradição aqui é que, na narrativa de Mateus 20:20-28, foi a mãe dos filhos de Zebedeu que fez a pergunta e, na narrativa de Marcos 10:35-44 ,a mãe não é mencionada e foram os próprios filhos que fizeram a pergunta. A suposta contradição, então, é sobre a identidade do interlocutor. As duas narrativas não se contradizem sobre quem realmente fez a pergunta? Não, não se contradizem. Essa conclusão baseia-se em uma leitura superficial do texto.

Para entender, vamos começar considerando a narrativa de Marcos. Marcos diz, “E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queremos que nos faças o que te pedirmos” (Marcos 10:35). O que essa parte da narrativa nos diz sobre o acontecimento? Será que o que ela diz é que os dois, Tiago e João, abriram a boca e falaram a mesma frase em uníssono como um coral, “Mestre, queremos que nos faças o que te pedirmos”? Pois a narrativa diz que “eles” – Tiago e João – “disseram”. Será que devemos entender que eles ensaiaram essa frase para que eles conseguissem falar exatamente a mesma frase juntos? Nesse caso, eles teriam que ensaiar o pedido também, para que falassem a mesma frase ao mesmo tempo: “E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda”. Isso quer dizer que os dois abriram a boca para falar ao mesmo tempo? É claro que não. Em qualquer narrativa, quando lemos que duas ou mais pessoas disseram alguma coisa para alguém, não devemos entender que todos necessariamente abriram a boca e literalmente disseram a mesma frase. Normalmente, o que acontece é que um abre a boca para falar e os outros que estão presentes são representados por aquele que está falando. Exemplo: “João e Carlos pediram ao pai para viajar no fim de semana”. Isso não quer dizer que os dois literalmente abriram a boca para fazer o pedido. O que pode ter acontecido é o seguinte: os dois foram juntos até o pai, mas somente João abriu a boca e disse: “Podemos viajar no fim de semana?” Enquanto isso, Carlos estava em pé do lado de João esperando o pai autorizar. Em um sentido muito verdadeiro podemos dizer que João e Carlos fizeram o pedido, não porque os dois literalmente abriram a boca para falar, mas porque João falou em nome dos dois, suas palavras representavam o pedido e o desejo dos dois. Nós nos expressamos assim o tempo inteiro e não há qualquer mentira ou contradição sobre isso.  Alguns exemplos em que isso acontece na Bíblia:

JEREMIAS 26
(12)  E falou Jeremias a todos os príncipes e a todo o povo, dizendo: O SENHOR me enviou a profetizar contra esta casa, e contra esta cidade, todas as palavras que ouvistes.
(13)  Agora, pois, melhorai os vossos caminhos e as vossas ações, e ouvi a voz do SENHOR vosso Deus, e arrepender-se-á o SENHOR do mal que falou contra vós.
(14)  Quanto a mim, eis que estou nas vossas mãos; fazei de mim conforme o que for bom e reto aos vossos olhos.
(15)  Sabei, porém, com certeza que, se me matardes, trareis sangue inocente sobre vós, e sobre esta cidade, e sobre os seus habitantes; porque, na verdade, o SENHOR me enviou a vós, para dizer aos vossos ouvidos todas estas palavras.
(16)  Então disseram os príncipes, e todo o povo aos sacerdotes e aos profetas: Este homem não é réu de morte, porque em nome do SENHOR, nosso Deus, nos falou.

Aqui nós vemos um caso em que Jeremias fala com o povo (versos 12-15). Diante do que Jeremias disse, “disseram os príncipes, e todo o povo… Este homem não é réu de morte, porque em nome do SENHOR, nosso Deus, nos falou”. Será que a intenção da narrativa é dizer que todos os príncipes e todo o povo literalmente abriram a boca e disseram essa mesmo frase como um coral aos sacerdotes e aos profetas? É claro que não. Tudo o que a narrativa exige é que alguém tenha falado a frase em nome dos princípios e do povo, como representantes daquilo que era a opinião dos príncipes e de todo o povo. Isso é suficiente para que a narrativa diga que foi o que “os príncipes, e todo o povo” disseram.

2 CRÔNICAS 26
(16) Mas, havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração até se corromper; e transgrediu contra o SENHOR seu Deus, porque entrou no templo do SENHOR para queimar incenso no altar do incenso.
(17) Porém o sacerdote Azarias entrou após ele, e com ele oitenta sacerdotes do SENHOR, homens valentes.
(18)  E resistiram ao rei Uzias, e lhe disseram: A ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o SENHOR, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que são consagrados para queimar incenso; sai do santuário, porque transgrediste; e não será isto para honra tua da parte do SENHOR Deus.

Novamente, aqui também não devemos entender que todos os 81 sacerdotes literalmente abriram a boca ao mesmo tempo e falaram a mesma frase: “A ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o SENHOR, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que são consagrados para queimar incenso; sai do santuário, porque transgrediste; e não será isto para honra tua da parte do SENHOR Deus”. Quando é dito que isso foi o que eles disseram, é suficiente crer que um deles abriu a boca para falar e que o que foi dito por um representava a posição de todos que ali estavam. O mais provável é que o sumo sacerdote Azarias tenha dito essas palavras ao rei Uzias em nome de todos os oitenta sacerdotes que com ele estava.

Sendo assim, quando a narrativa de Marcos 10:35-44 diz que eles – Tiago e João – disseram, “E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo…” (Marcos 10:35), não há nada sobre essas palavras que nos obrigue a crer que foram eles que literalmente abriram a boca para falar. Pelo contrário, quando uma narrativa atribui a mesma frase a mais de um personagem, dificilmente a intenção é dizer que todos literalmente abriram a boca para falar.  Nós nos expressamos assim o tempo inteiro em nossa vida cotidiana e não há qualquer mentira ou contradição sobre essa forma de se expressar.

Sendo assim, somos obrigados a concluir que a narrativa de Mateus 20:20-28 e a narrativa de Marcos 10:35-44 não se contradizem. A narrativa de Mateus 20:20-28 simplesmente dá mais detalhes sobre o que aconteceu. Marcos diz que “aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu” (Marcos 10:35). Mateus não contradiz isso, mas dá a informação adicional de que a mãe deles estava com eles: “Então se aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos” (Mateus 20:20). Além disso, Mateus mostra que quem abriu a boca para falar foi a mãe: “Então se aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, adorando-o, e fazendo-lhe um pedido. E ele diz-lhe: Que queres? Ela respondeu…” (Mateus 20:20-21). Isso não contradiz Marcos porque quando ela abriu a boca para falar, os filhos estavam presentes e ela falou em nome dos filhos, isto é, suas palavras expressavam os desejos dos filhos. Sendo assim, é perfeitamente apropriado atribuir as palavras dela aos filhos. O que ela disse, Tiago e João também disseram através dela. No próprio evangelho de Mateus, quando lemos a narrativa inteira, vemos que tanto Jesus como os apóstolos entenderam assim: “Jesus, porém, respondendo, disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado? Dizem-lhe eles: Podemos” (Mateus 20:22) “Sabeis” e “pedis” é o verbo conjugado na segunda pessoa do plural – “vós sabeis”, “vós pedis”. Jesus não diz, “tu não sabes”. Ele diz, “vós não sabeis”. Por que ele diz vós e não tu? Porque embora somente a mãe tenha literalmente aberto a boca para falar, ela falava em nome dos filhos.

Como já dissemos, para que uma narrativa seja legitimamente acusada de entrar em contradição com outra, não é suficiente demonstrar que elas mencionem aspectos diferentes do que aconteceu. É necessário demonstrar que os elementos mencionados em uma narrativa não podem ser racionalmente conciliados com os elementos mencionados na outra narrativa. Não é o caso de Mateus 20:20-28 e Marcos 10:35-44. Marcos diz que Tiago e João procuraram Jesus para fazer um pedido, mas não diz quem abriu a boca para falar. Mateus diz o mesmo e acrescenta o fato de que eles foram acompanhados pela mãe e foi ela quem abriu a boca para falar em nome dos dois. Não são narrativas contraditórias, mas complementares, pois todos os elementos das duas narrativas podem ser racionalmente conciliados.

 

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