Princípios de Interpretação para Solucionar Supostas Contradições Bíblicas

PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO PARA SOLUCIONAR SUPOSTAS CONTRADIÇÕES BÍBLICAS
Rev. Frank Brito

“Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra, pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o princípio; para que conheças a certeza das coisas de que já estás informado”. (Lucas 1:1-4)

Quando se trata de supostas contradições entre as narrativas bíblicas, muitas são facilmente solucionadas quando entendemos um pouco mais sobre como se forma uma narrativa. Uma narrativa é o produto de três elementos principais: (1) o acontecimento, (2) a interpretação e (3) a seleção.

É importante entender que uma narrativa é diferente do próprio acontecimento. A narrativa é o que contamos sobre o que aconteceu, mas não é o próprio acontecimento. Mas para contar o que aconteceu, precisamos entender o acontecimento. A interpretação é o processo de buscar entender o sentido do que aconteceu. Tendo chegado a uma conclusão sobre o sentido do que aconteceu, há uma seleção dos elementos que julgamos mais importantes e relevantes para construir a narrativa. A narrativa, então, não é um relato de tudo o que aconteceu, mas é uma seleção dos elementos que julgamos relevantes e importantes o suficiente para serem mencionados. E as coisas que são consideradas como mais relevantes e importantes depende tanto de nossa interpretação dos acontecimentos como de nosso objetivo ao narrar o que aconteceu. A narrativa, então, é o produto desses elementos principais, do próprio acontecimento e da seleção que fazemos a partir da nossa interpretação do que aconteceu.

Se alguém nos pergunta, “O que você fez no fim de semana?”, a resposta que damos a essa pergunta não são os próprios acontecimentos do fim de semana, mas é uma narrativa do que aconteceu. Essa narrativa não incluirá literalmente tudo o que aconteceu no fim de semana, mas é o produto de uma seleção dos acontecimentos que julgamos mais importantes e relevantes para aquele que fez a pergunta. Se alguém nos pergunta, “O que você fez no fim de semana?”, eu provavelmente não respondo dizendo que às 10:03 do sábado eu bocejei, que às 10:05 eu espirrei e que às 10:07 eu fui até a cozinha para abrir a geladeira. Por que eu não menciono essas coisas? Elas não fazem parte do que eu fiz no fim de semana? Sim, mas na maioria dos casos não são acontecimentos relevantes e importantes o suficiente para serem mencionados.

Se eu vou para uma festa e alguém me pergunta, “Como foi a festa?”, a resposta que eu dou pode variar de acordo com a pessoa que faz a pergunta. Se é minha mãe, é possível que eu responda: “Minha tia estava lá”. Por quê? Porque a presença dela na festa pode ser uma informação relevante para minha mãe.  Mas se quem pergunta é um amigo que não conhece minha tia, dificilmente mencionarei que vi minha tia lá.

Um único acontecimento não precisa ter uma única narrativa porque a construção da narrativa sempre envolve uma seleção que leva em consideração muitos fatores diferentes. Por isso, a existência de diversas narrativas, mencionando e enfatizando diferentes elementos da história, não significa necessariamente que há contradições entre elas. Por exemplo, vamos dizer que, ao chegar em uma festa, João e Maria imediatamente venham conversar comigo. Isso é o que aconteceu. Ao contar o que aconteceu para alguém, é possível que eu diga, “Quando eu cheguei na festa, João veio imediatamente conversar comigo”, sem mencionar que Maria estava com ele. Ou eu posso dizer, “Quando eu cheguei na festa, Maria veio imediatamente conversar comigo” sem mencionar que João estava com ela. Não há nenhuma contradição entre uma narrativa e outra e não há mentira em nenhuma das duas. Nós fazemos isso o tempo inteiro na vida cotidiana e não cremos que estamos mentindo ou se contradizendo por isso. Quando contamos uma história, dificilmente damos uma lista com literalmente todas as pessoas que estavam presentes no acontecimento. Normalmente, nós mencionamos somente algumas pessoas, fruto de uma seleção que leva em consideração muitos fatores diferentes.

NARRATIVA VERBAL E NARRATIVA VISUAL

Uma narrativa pode ser exclusivamente verbal ou pode incluir elementos visuais. Se eu escrevo uma mensagem no WhatsApp contando como foi a festa, trata-se de uma narrativa exclusivamente verbal, mas se além de escrever um texto contando como foi, eu envio fotos da festa, a narrativa passa a incluir elementos visuais. Um acontecimento pode ser narrado através de um filme. No caso de um filme, o acontecimento está sendo narrado através de palavras e de imagens.

É importante entender a diferença entre a narrativa verbal e a narrativa visual porque cada forma de narrar impõe limites específicos sobre as possibilidades de construção da narrativa. Por exemplo, no caso de uma narrativa exclusivamente verbal, não é possível transmitir exatamente como eram as feições de uma pessoa. Como Deus escolheu narrar a história de Cristo através da linguagem verbal (o texto bíblico), nós não sabemos como era as feições do rosto de Cristo. Eu posso dizer se uma pessoa era alta ou baixa, se alguém era branco ou negro, se tinha cabelo longo ou curto, mas isso não se compara a mostrar uma foto ou uma filmagem da pessoa. Ou seja, a linguagem verbal impõe alguns limites sobre a possibilidade de descrever a aparência das pessoas e das coisas em minha narrativa. Por outro lado, a linguagem visual tem determinadas limitações que a linguagem verbal não possui. Por exemplo, na linguagem verbal temos uma maior capacidade de seleção no processo de formação da narrativa. Novamente, vamos supor que, ao chegar em uma festa, João e Maria imediatamente venham conversar comigo. Isso é o que aconteceu. Ao contar o que aconteceu para alguém, é possível que eu diga, “Quando eu cheguei na festa, João veio imediatamente conversar comigo”, sem mencionar que Maria estava com ele. Ou eu posso dizer, “Quando eu cheguei na festa, Maria veio imediatamente conversar comigo”. Por outro lado, se o que aconteceu for filmado, não é possível fazer esse tipo de seleção. Pois se Maria e João estiverem juntos falando comigo, a câmera vai necessariamente mostrar os dois. Se um deles não aparecer na filmagem é porque eles não estavam falando comigo naquele momento. Não é como na linguagem verbal em que eu posso simplesmente deixar de mencionar a presença de um deles sem precisar negar que ele estavam lá. A linguagem verbal, portanto, nos dá uma capacidade maior de selecionar a informação específica que queremos que seja incluída na narrativa.

O QUE SÃO NARRATIVAS REALMENTE CONTRADITÓRIAS?

Diante do que vimos até aqui, é evidente que um único acontecimento não precisa ter uma única narrativa. Se há duas narrativas sobre o mesmo acontecimento, elas podem mencionar e enfatizar aspectos diferentes do que aconteceu, mas isso não significa que estão se contradizendo. Se aconteceu uma festa e você perguntar como foi a festa para três pessoas que estavam lá, você provavelmente ouvirá três narrativas diferentes, mas isso não significa que elas se contradizem.

Para que uma narrativa seja acusada de entrar em contradição com outra, não é suficiente demonstrar que elas mencionem aspectos diferentes do que aconteceu. É necessário demonstrar que os elementos mencionados em uma narrativa não podem ser racionalmente conciliados com os elementos mencionados na outra narrativa.  Por exemplo, se eu digo que cheguei na festa e conversei com João, isso não significa que eu não conversei com outras pessoas. Portanto, se em outra narrativa sobre a mesma festa, eu digo que conversei com Maria, isso não contradiz a narrativa em que eu disse que conversei com João. Por outro lado, se eu disser que eu cheguei na festa e somente conversei com João e se em outra narrativa sobre a mesma festa eu digo que conversei com João e Maria, há uma verdadeira contradição. Por quê? Porque não é possível conciliar racionalmente as duas declarações. Se eu conversei somente com João, isso significa que eu não conversei com outras pessoas e, portanto, não posso ter conversado com Maria. Precisamos, então, diferenciar entre narrativas complementares e narrativas contraditórias. Narrativas complementares mencionam aspectos diferentes sobre o que aconteceu de uma forma que podem ser conciliados racionalmente. Narrativas contraditórias mencionam aspectos diferentes de uma forma que não podem ser conciliados racionalmente.

SOLUCIONANDO SUPOSTAS CONTRADIÇÕES

Com base no que no que foi dito até aqui sobre narrativas, podemos solucionar diversas supostas contradições bíblicas. Meu objetivo não é solucionar todas as supostas contradições que as pessoas levantam. Meu objetivo é priorizar os casos que servem de exemplo e padrão para solucionar muitos outros casos. Com frequência, quando aprendemos a solucionar o problema encontrado em um texto, a solução encontrada pode ser facilmente aplicada a muitos outros textos. Nosso objetivo, então, não é somente dar ao leitor da Bíblia soluções para supostas contradições bíblicas. Nosso objetivo é ajudar o leitor a desenvolver a capacidade de solucionar essas supostas contradições sozinho.

Aos poucos, vamos escrevendo soluções para supostas contradições e acrescentando na seguinte lista:

1- Supostas Contradições Envolvendo a Identidade do Interlocutor
(a) Mateus 20:20-28 e Marcos 10:35-44

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