“E se alguém não chega a encontrar a explicação de tudo o que procura, lembre-se de que é homem, infinitamente inferior a Deus, que recebeu a graça de maneira limitada, que ainda não é semelhante nem igual a seu Autor e que não pode ter a experiência e o conhecimento de todas as coisas como Deus (…) Tu, ó homem, não és incriado e não existias junto a ele como o seu próprio Verbo; mas pela sua supereminente bondade recebeste agora o início da existência e aprendes do Verbo, pouco a pouco, as economias de Deus que te criou. (…) Em compensação, uma inteligência sã, equilibrada, piedosa e amante da verdade dedicar-se-á a considerar as coisas que Deus pôs em poder dos homens, à disposição dos nossos conhecimentos, e aplicando-se a elas com todo o seu ardor, progredirá e, pelo estudo constante, terá conhecimento profundo. Estas coisas são tudo o que cai debaixo dos nossos olhares e tudo o que está contido, claramente e sem ambigüidade, em termos próprios nas Escrituras. Eis por que as parábolas não devem ser adaptadas a coisas ambíguas, porque quem as explica o deve fazer sem acrobacias e devem ser explicadas por todos da mesma maneira, e assim o corpo da verdade se manterá íntegro, harmoniosamente estruturado e livre de transformações. Mas aplicar, nas explicações das parábolas, coisas que não são expressas claramente e são ocultas e que cada um pode imaginar da maneira que quiser é não ter nenhuma regra da verdade: quantos são os exegetas tantas serão as verdades antagônicas e as teorias contraditórias, como nas disputas dos filósofos pagãos. Desta forma, o homem estará sempre à procura da verdade sem nunca encontrá-la, por ter rejeitado o método próprio da pesquisa. E quando o Esposo chegar, quem não tem a sua lâmpada pronta, não iluminada por luz brilhante, recorre aos que nas trevas retorcem as explicações das parábolas, abandonando aquele que pela pregação clara lhe concederia gratuitamente a entrada, e fica excluído das núpcias. Ora, todas as Escrituras, profecias e evangelhos, que todos têm a possibilidade de ouvir, ainda que nem todos acreditem, proclamam claramente e sem ambigüidade, excluindo qualquer outro, que um só e único Deus criou todas as coisas por meio de seu Verbo, as visíveis e as invisíveis, as celestes e as terrestres, as que vivem na água e as que se arrastam debaixo da terra, como demonstramos com as próprias palavras da Escritura. Por seu lado, o mundo em que nós estamos, por tudo o que apresenta aos nossos olhares, testemunha que é único quem o fez e o governa. Então, como parecem néscios os que diante de manifestação tão clara, estão com os olhos cegos e não querem ver a luz da pregação, que se fecham em si mesmos e com explicações obscuras das parábolas se imaginam, cada um, de ter encontrado o seu Deus! Com efeito, no que diz respeito ao Pai imaginado por eles, nenhuma Escritura diz algo claramente, em termos próprios e sem contestação possível; e eles próprios são testemunhas disso quando afirmam que o Salvador ensinou estas coisas secretamente, não a todos, mas a alguns discípulos capazes de entendê-las, indicando-as por meio de provas, enigmas e parábolas. E chegam ao ponto de dizer que um é o que é chamado Deus e outro é o Pai, indicado pelas parábolas e pelos enigmas. Como as parábolas podem ter muitas explicações, qual é o homem, amante da verdade, que não convirá que seria perigoso e irracional basear-se nelas na procura de Deus e deixar o que é certo, indubitável e verdadeiro? Não é isso edificar a própria casa não sobre a rocha firme e estável e descoberta, mas na insegurança da areia instável? Por isso, o desmoronamento desta construção é fácil. Possuindo, portanto, como Regra a própria verdade e o testemunho evidente de Deus, não devemos, ao procurar em todas as direções uma resposta às nossas questões, abandonar o sólido e verdadeiro conhecimento de Deus. Devemos, sim, orientando a solução das questões neste sentido, aprofundar a procura do mistério da economia que vem de Deus, crescer no amor daquele que tanto fez para nós e continuamente faz. Se não podemos encontrar a solução de todas as questões que são propostas nas Escrituras nem por isso devemos procurar outro Deus fora daquele que é o verdadeiro Deus; seria o máximo da impiedade. Devemos deixá-las para o Deus que nos criou, bem sabendo que as Escrituras são perfeitas, entregues pelo Verbo de Deus e pelo seu Espírito e nós tanto somos pequenos e últimos em relação ao Verbo de Deus e ao seu Espírito quanto precisamos receber o conhecimento dos mistérios de Deus. Por outro lado, não há que admirar se isso nos acontece nas coisas espirituais, celestes, que devem ser reveladas, porque até das coisas que estão ao nosso alcance — quero dizer daquelas que pertencem a este mundo criado que podemos tocar, ver, que estão ao nosso lado — muitas escapam ao nosso conhecimento e as deixamos a Deus. É necessário que ele esteja acima de todos. Que aconteceria se quiséssemos explicar as causas da cheia do Nilo? Poderíamos dizer coisas mais convincentes ou menos, mas a verdade certa e firme só Deus sabe. Nós sequer sabemos onde é a morada das aves que vêm aqui na primavera e partem no outono, contudo é fato que acontece neste mundo. Qual a explicação que poderíamos dar do fluxo e refluxo do mar, porque é evidente que estes fenômenos têm causa bem determinada. O que podemos afirmar das coisas que estão do outro lado do Oceano? Ou ainda, que sabemos sobre a origem da chuva, dos relâmpagos, dos trovões, das nuvens, da neblina, dos ventos e coisas semelhantes? Onde se armazenam a neve e o granizo e coisas semelhantes? O que sabemos da composição das nuvens, da natureza da neblina? Por que a lua é ora crescente ora minguante? Ou ainda, qual é a causa das diferenças das águas, dos metais, das pedras e coisas semelhantes? De todas estas coisas poderíamos falar longamente, nós que procuramos as causas das coisas, mas somente Deus que as fez pode dizer a verdade. Se, portanto, até nas coisas criadas, a ciência de algumas coisas é reservada a Deus, de outras é possível também a nós, qual é a dificuldade em pensar que entre os problemas propostos pelas Escrituras — estas Escrituras que são inteiramente espirituais — alguns os resolvamos com a graça de Deus e outros os tenhamos de deixar para ele, e não somente no mundo presente, mas também no futuro, de forma que Deus seja sempre o mestre e que o homem seja sempre o discípulo de Deus? (…) Se, portanto, da maneira que acabamos de dizer, deixarmos a Deus algumas questões, conservaremos a nossa fé, e estaremos longe dos perigos e encontraremos concorde toda a Escritura que Deus nos deu; as parábolas concordarão com as passagens claras e estas explicarão as parábolas e, na polifonia dos textos, escutaremos em nós uma só melodia harmoniosa a cantar o Deus que fez todas as coisas. Se, por exemplo, nos perguntarem: O que Deus fazia antes de criar o mundo? diremos que a resposta está somente com Deus. Que Deus tenha feito este mundo por criação, com um início no tempo, é o que nos ensinam todas as Escrituras; mas o que fazia antes disso, nenhuma Escritura o diz. Portanto a resposta a esta pergunta pertence a Deus e não é necessário querer imaginar emanações sem sentido, loucas e blasfematórias e na ilusão de ter descoberto a origem da matéria, rejeitar a Deus que fez todas as coisas.” (Irineu de Lyon, Contra as Heresias, Livro 2, Capítulo 27)
Isso é o mesmo que a Confissão de Fé de Westminster ensina:
“A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.” (Confissão de Fé de Westminster, 1:9)