“E dizia-lhes: Bem invalidais o mandamento de Deus para guardardes a vossa tradição. Porque Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e quem maldisser, ou o pai ou a mãe, certamente morrerá.” (Marcos 7:9-10)
Por todo o seu ministério terreno, o Senhor sempre citava as palavras dos profetas como se fossem as palavras do próprio Deus. Por exemplo, em seu conflito com os escribas e fariseus sobre a tradicional cerimônia de lavagem, ele criticou-os por invalidar o “mandamento de Deus” (Marcos 7:8-9). Mas ao citar o mandamento de Deus logo em seguida, ele citou o que Moisés disse. “Porque Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe” (Marcos 7:10). Ou seja, o que Moisés disse é tratado como equivalente ao que Deus disse. Mas se o objetivo de Jesus era criticar as “doutrinas que são preceitos dos homens” (Mateus 15:9) e se Moisés era um homem, o que faz com que esses preceitos de homens sejam diferentes das palavras de Moisés? O que diferencia é o fato de Moisés ter sido um profeta.
A primeira vez em que a palavra profeta (נָבִיא – nabi no hebraico) aparece na Bíblia é em Gênesis 20:7, mas não há nessa passagem uma explicação do que é. A passagem mais importante do Pentateuco para entender o que é um profeta se encontra no livro de Deuteronômio, o quinto livro de Moisés:
“O SENHOR teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis; conforme a tudo o que pediste ao SENHOR teu Deus em Horebe, no dia da assembleia, dizendo: Não ouvirei mais a voz do SENHOR teu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então o SENHOR me disse: Falaram bem naquilo que disseram. Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em meu nome, que eu não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá. E, se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Quando o profeta falar em nome do SENHOR, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele”. (Deuteronômio 18:15-22)
Em Deuteronômio 18:16, Deus fala sobre o que aconteceu quando o povo recebeu os dez mandamentos. Diferente do que muitos pensam, os dez mandamentos não foram inicialmente revelados ao povo através das duas tábuas de pedra. Antes de dar as tábuas de pedra, Deus se revelou ao povo em meio a uma “nuvem espessa” (Êxodo 19:9) e “houve trovões e relâmpagos sobre o monte, e uma espessa nuvem, e um sonido de buzina mui forte, de maneira que estremeceu todo o povo que estava no arraial. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. SENHOR descera sobre ele em fogo; e a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente” (Êxodo 19:16-18). Nesse momento, Deus começou a falar e a declarar os dez mandamentos audivelmente para que todos pudessem ouvir:
“Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim… E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso retirou-se e pôs-se de longe. E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale Deus conosco, para que não morramos. E disse Moisés ao povo: Não temais, Deus veio para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, afim de que não pequeis… Então disse o SENHOR a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Vós tendes visto que, dos céus, eu falei convosco.” (Êxodo 20:1-2, 22)
“E vós vos chegastes, e vos pusestes ao pé do monte; e o monte ardia em fogo até ao meio dos céus, e havia trevas, e nuvens e escuridão; então o SENHOR vos falou do meio do fogo; a voz das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes figura alguma. Então vos anunciou ele a sua aliança que vos ordenou cumprir, os dez mandamentos…” (Deuteronômio 4:11-13)
Em Deuteronômio 18:17, Deus diz que, quando isso aconteceu, eles “falaram bem naquilo que disseram”, pois o objetivo de Deus era realmente criar esse temor neles (Êxodo 20:20). Como uma solução para o problema, Deus diz, no verso 18: “Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu”. De que maneira o profeta solucionaria o problema? Em vez de Deus falar diretamente com o povo, como ele fez ao declarar os dez mandamentos audivelmente sobre o monte Sinai, ele transmitiria suas palavras de uma forma menos intimidadora e assustadora. Ele comunicaria suas palavras ao profeta e o profeta, por sua vez, transmitiria as palavras de Deus ao povo: “… porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele” (Deuteronômio 18:18-19). Este, então, é o que significa ser um profeta. Um profeta é alguém escolhido por Deus para ouvir suas palavras e transmiti-las ao povo. Por isso, as palavras dos profetas deveriam ser cridas e obedecidas não como palavras de homens, mas como palavras do próprio Deus.
Essa é a definição de profeta que encontramos em toda a Bíblia. O livro de Jeremias, por exemplo, começa dizendo:
“Assim veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo: Antes que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta. Então disse eu: Ah, Senhor DEUS! Eis que não sei falar; porque ainda sou um menino. Mas o SENHOR me disse: Não digas: Eu sou um menino; porque a todos a quem eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar, falarás. Não temas diante deles; porque estou contigo para te livrar, diz o SENHOR. E estendeu o SENHOR a sua mão, e tocou-me na boca; e disse-me o SENHOR: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca”. (Jeremias 1:4-9)
Aqui, como em Deuteronômio 18, é dito as palavras dos profetas eram as palavras do próprio Deus, e que a função de um profeta era transmiti-las ao povo. Ou seja, a profecia não era o resultado de um mero sentimento subjetivo. Os profetas verdadeiramente ouviam Deus falar da mesma forma que o povo ouviu Deus falar em Êxodo 19-20.
Por isso, também como em Deuteronômio 18, Jeremias ensina que aqueles que se diziam profetas, mas não ouviam o Senhor falar, eram falsos profetas:
“E disse-me o SENHOR: Os profetas profetizam falsamente no meu nome; nunca os enviei, nem lhes dei ordem, nem lhes falei; visão falsa, e adivinhação, e vaidade, e o engano do seu coração é o que eles vos profetizam.” (Jeremias 14:14)
“Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Não deis ouvidos às palavras dos profetas, que entre vós profetizam; fazem-vos desvanecer; falam da visão do seu coração, não da boca do SENHOR. Dizem continuamente aos que me desprezam: O SENHOR disse: Paz tereis; e a qualquer que anda segundo a dureza do seu coração, dizem: Não virá mal sobre vós. Porque, quem esteve no conselho do SENHOR, e viu, e ouviu a sua palavra? Quem esteve atento à sua palavra, e ouviu? (…) Não mandei esses profetas, contudo eles foram correndo; não lhes falei, contudo eles profetizaram. Mas, se estivessem estado no meu conselho, então teriam feito o meu povo ouvir as minhas palavras, e o teriam feito voltar do seu mau caminho, e da maldade das suas ações.” (Jeremias 23:16-18, 21-22)
É por isso que não há contradição entre Jesus criticar “doutrinas que são preceitos dos homens” (Mateus 15:9) e, ao mesmo tempo, citar e defender as palavras dos profetas, que também são homens. Não há contradição porque um profeta era alguém escolhido por Deus para ouvir suas palavras e transmiti-las ao povo. A doutrina dos profetas, então, não eram preceitos de homens. Era a Palavra de Deus.