“Do qual muito temos que dizer, de difícil interpretação; porquanto vos fizestes negligentes para ouvir.” (Hebreus 5:11)

No capítulo 5 da epístola aos Hebreus, o apóstolo citou dois salmos – o Salmo 2 e o Salmo 110 – e explicou que Jesus é o Filho de Deus do Salmo 2 e o sacerdote do Salmo 110:

“Porque todo sumo sacerdote, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados; e possa compadecer-se ternamente dos ignorantes e errados; pois também ele mesmo está rodeado de fraqueza. E por esta causa deve ele, tanto pelo povo, como também por si mesmo, fazer oferta pelos pecados. E ninguém toma para si esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Arão. Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, hoje te gerei. Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque.” (Hebreus 5:1-6)

“Eu, porém, ungi o meu Rei sobre o meu santo monte de Sião. Proclamarei o decreto: o Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e os fins da terra por tua possessão.” (Salmos 2:6-8)

“Jurou o Senhor, e não se arrependerá: tu és um sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque.” (Salmos 110:4)

A epístola aos Hebreus inteira é uma exposição do livro dos Salmos. Do princípio ao fim da epístola, quase tudo o que o apóstolo diz são explicações de como os salmos são sobre Jesus. Só no primeiro capítulo, ele cita os salmos 2, 45, 97, 102, e 110, e explica que esses salmos são sobre Jesus. É importante lembrar que os salmos eram cânticos que eles cantavam (Ef 5:18-19; Cl 3:16) nos cultos (Hb 2:12; Sl 22:22-31). Ou seja, quando o apóstolo explica um salmo, ele estava explicando o significado de cânticos que eles estavam acostumados a cantar nos cultos de suas igrejas.

No capítulo 5, depois de citar o Salmo 110, o apóstolo interrompe sua explicação para fazer uma reclamação. Ele diz que gostaria de se aprofundar no significado do Salmo 110, mas reclama que os leitores não eram suficientemente esforçados no estudo das doutrinas da Sagradas Escrituras:

“Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu. E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem; chamado por Deus sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque. Do qual muito temos que dizer, de difícil interpretação; porquanto vos fizestes negligentes para ouvir. Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento. Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino. Mas o mantimento sólido é para os maduros, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal. Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à maturidade, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno. E isto faremos, se Deus o permitir.” (Hebreus 5:8-14; 6:1-3)

Aqui o apóstolo fala sobre as doutrinas do Cristianismo, dividindo-as em duas categorias principais.  Ele fala de um conjunto de doutrinas que ele chama de “primeiros rudimentos das palavras de Deus” (Hb 5:12), “leite” (Hb 5:12-13) e “rudimentos da doutrina de Cristo” (Hb 6:1), e diferencia o ensino dessas doutrinas de um ensino doutrinário mais profundo, que é o que ele chama de “sólido mantimento” (Hb 5:14). As doutrinas fundamentais são as doutrinas que devemos pregar aos incrédulos e que devemos esclarecer para os novos convertidos. É o leite dos bebês espirituais – aqueles que acabaram de “nascer de novo” (Jo 3:3). São as doutrinas que caracterizam o cristão como um autêntico discípulo de Cristo. Contudo, ser um autêntico discípulo de Cristo não é o mesmo que ser um discípulo maduro. Ou seja, os genuínos discípulos de Cristo não têm o mesmo grau de maturidade. 

A reclamação do apóstolo não é contra os novos convertidos que precisam de instrução sobre as doutrinas fundamentais da fé cristã. É contra aqueles que, pelo tempo, já deveriam ser cristãos muito maduros, capazes até de ensinar outras pessoas (Hb 5:12). O que torna um cristão mais ou menos maduro? Segundo o apóstolo, o grau de maturidade de cada cristão depende do quanto ele entende, aceita e pratica as doutrinas de Cristo. Aqueles que entendem e aceitam somente o “leite” são cristãos genuínos, mas ainda não são cristãos maduros. Os leitores da epístola aos Hebreus eram cristãos há um bom tempo, e o apóstolo queria ensinar doutrinas mais profundas com base no Salmo 110, mas ele temia que os leitores poderiam ser incapazes de entender. Por isso, ele diz: “Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à maturidade” (Hb 6:1). O sentido não é que eles deveriam abandonar os rudimentos da doutrina de Cristo. É que depois de aprender as doutrinas básicas, eles deveriam continuar avançando, esforçando-se para entender e praticar doutrinas mais profundas e mais complexas. Ou seja, o apóstolo critica aqueles que não são suficientemente esforçados no estudo das doutrinas das Sagradas Escrituras.

Você, leitor, faça um pequeno teste consigo mesmo com base no que está escrito nesse trecho da epístola aos Hebreus. Você entende tudo o que você lê Salmo 110? Você entende com clareza o que o Salmo 110 ensina sobre Jesus? Você entende o que significa reconhecer Jesus como um sumo sacerdote? Você sabe quem é Melquisedeque? Você sabe porque é dito que Jesus é um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque? Se você é um novo convertido e não sabe, não tem problema. Mas se você já é um cristão há mais tempo, então a reclamação de Hebreus se aplica a você. Se você é um cristão que lê Hebreus, mas não é capaz de entender o que o autor ensina, se não é capaz de entender os salmos que ele cita, você precisa se esforçar mais para se aprofundar na doutrina de Cristo.

O que o apóstolo diz nesse trecho também é significativo para entendermos como devemos nos relacionar com cristãos de outras linhas teológicas e denominacionais. Se um cristão genuinamente entende e aceita os primeiros rudimentos da doutrina de Cristo, devemos considerá-lo como um cristão autêntico, o que não significa que seja um cristão maduro. Se uma igreja aceita e ensina os primeiros rudimentos da doutrina de Cristo, devemos considerá-la como uma  autêntica igreja cristã, o que não significa que seja uma igreja madura. Ser uma igreja autêntica não é o mesmo que ser uma igreja madura. Podemos fazer uma comparação com a vida humana. Se duas pessoas estão vivas, isso não significa que as duas são igualmente saudáveis. Dentre os vivos, alguns são muito saudáveis e outros estão muito doentes. E os que estão doentes podem estar doentes porque foram negligentes. Não cuidaram da própria saúde. A saúde e a maturidade de um cristão e de uma igreja depende do quanto entendem, aceitam e praticam as doutrinas de Cristo. “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina” (1 Tm 4:16). Por isso, quando nos deparamos com cristãos de outras linhas denominacionais, não devemos automaticamente presumir que são todos falsos cristãos. Se eles entendem e aceitam o leite, então há verdadeira vida neles, mesmo que não estejam tão saudáveis e maduros quanto poderiam estar. Isso não significa que podem se acomodar. Como a epístola aos Hebreus deixa claro, todos os cristãos têm o dever de crescer no entendimento das doutrinas de Cristo, avançando das doutrinas mais básicas para as mais complexas. Todos os que entendem e aceitam os primeiros rudimentos das palavras de Deus devem ser reconhecidos como autênticos cristãos, mas isso não anula o fato de que devem ser exortados a avançar.

Segundo o apóstolo, negligenciar o dever de crescer no entendimento das doutrinas de Cristo traz prejuízos para a vida cristã: “Mas o mantimento sólido é para os maduros, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal” (Hb 5:14). Ou seja, quanto mais nos esforçamos para entender e aceitar as doutrinas de Cristo, mais santos nos tornamos. Quanto mais nós negligenciamos esse dever, menos seremos capazes de discernir entre o bem e o mal e, consequentemente, seremos mais vulneráveis aos ataques da carne, do mundo e dos demônios. No contexto imediato da epístola aos Hebreus, os cristãos hebreus estavam sendo tentados a voltar para o Judaísmo. O que o apóstolo fez para combater essa grande tentação? Ele escreveu uma carta para explicar o significado de diversos salmos. Ou seja, o correto entendimento desses salmos foi o instrumento que o apóstolo escolheu para conduzi-los a uma compreensão mais profunda das doutrinas de Cristo, que era o que impediria que eles fossem enganados por heresias e abandonassem completamente o Cristianismo. Isso significa que a compreensão correta dos salmos é uma poderosa arma contra a tentação da carne, do mundo e dos demônios, e a ignorância dos salmos pode ser a razão de estarmos fracos na batalha. O mesmo pode ser dito sobre a ignorância a respeito de qualquer outra doutrina de Cristo. As doutrinas de Cristo, tanto as doutrinas mais básicas quanto as mais complexas, são poderosíssimas armas espirituais. Negligenciá-las é a causa de grandes prejuízos para as nossas vidas.